#desarquivandoBR: Em honra ao meu pai

Em tudo que eu faço e em toda luta que assumo tenho o nome de meu pai sobre mim.
Nesta madrugada completará 48 anos que uma noite tenebrosa teve início em nosso país.  O sol nasceu qual muitos não queriam - alguns desses ainda precisam ser denunciados e desvelados por nós, todos os dias.
Meu pai foi militante do PCBR, preso, torturado. Uma história ainda a ser contada.  Relembro texto que escrevi em agosto último nessa data.  Para desarquivar o Brasil.

Era outubro de 1991 quando o Papa João Paulo II visitou Natal e participou do Congresso Eucarístico Nacional. Talvez a única lembrança concreta que reste da vinda de Karol Wojtila a Natal seja o elefante branco do papódromo - que chegou a ser bem utilizado como espaço cultural nos anos 90, mas hoje está abandonado.
Meu pai apresentava um programa popular na TV Potengi (pouco depois foi substituído por Luiz Almir). Estavam organizando a visita do Papa e os jornais destacaram que a Arquidiocese estava escolhendo pessoas para participarem da cerimônia de lava-pés com João Paulo II. Rubens Lemos não contou conversa e propôs à igreja, na TV, que fosse escolher meninos dos pés podres por bichos de pés e outras doenças na Favela do Japão em Natal.
Pouco tempo antes, meu pai, que fora líder do PCBR no RN e preso político no Regime Militar, protagonizou um momento de coragem extrema na Nova República. Não sozinho, evidentemente. Fernando Collor, presidente eleito, havia indicado como ministro da Aeronáutica o brigadeiro Sócrates Monteiro e meu pai o reconheceu como um de seus torturadores no DOI-CODI. No depoimento que prestou ao Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, meu pai esclareceu que o interrogatório a que fui submetido, durou, aproximadamente, 40 minutos, e ocorreu na segunda quinzena de janeiro de 1973, época em que eu, na qualidade de preso político, estava recolhido ao lado de outros presos políticos, àquele organismo que era conhecido, embora fosse um organismo clandestino. Você pode ler o resto da história, inclusive parte da história de meu pai, nos links acima. Alguns que apoiaram o meu pai em suas denúncias foram prejudicados - meu pai topou até uma acareação com o brigadeiro em Brasília, que acabou empossado, mas caiu meses depois por denúncias de corrupção.
E recuando um pouco mais no tempo, vejo meu pai enfrentando a dura realidade de ter um filho seu preso. Em 11 de abril de 1986, meu irmão, Marcos Wilson Reale Lemos, era o mais jovem do grupo do PCBR que decidiu assaltar a agência do Banco do Brasil da UFBA, em Salvador. O assalto foi frustrado e todos foram presos. Lungaretti, do http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/, fez um relato aqui. Para o PT, eram todos cachorros loucos e, pela necessidade política de se desvencilhar da luta armada da década anterior, viraram as costas aos quatro presos em Salvador.
O então presidente do PT, Lula, dava uma entrevista em que tentava explicar o envolvimento dos quatro com o partido, quando meu pai entrou inesperadamente na coletiva e, de forma ousada, se identificou. Não temeu o partido nem as conseqüências porque não era justo que o PT virasse as costas ao seu filho e aos companheiros: Sou Rubens Lemos, pai de Marcos Wilson Reale Lemos. Segundo a matéria do jornal ao lado, a afirmação provocou impacto e surpresa entre os presentes e imediatamente provocou um clima de constrangimento entre os membros da Comissão Política da Executiva Nacional. Rubens Lemos deu entrevista como pai de um dos presos e membro do Diretório Nacional do PT. Não nego que lutei contra a ditadura e fui torturado por isso, respondeu sobre a insinuação de meu irmão ser filho de ex-terrorista. Evidentemente, ainda era cedo para que meu pai pudesse assumir integralmente seu papel na luta armada.
Conheço defeitos de meu pai que ninguém conhece. Por muito tempo atribui a mim os erros que eram dele. Hoje sei reconhecê-los. Como posso reconhecer o que de admirável e indiscutível Rubens Lemos deixou de exemplo - não apenas a mim ou aos outros filhos, mas à esquerda e à luta política do país.
Meu pai tinha coragem. Teve coragem de enfrentar a ditadura como poucos tiveram. Enfrentou de peito aberto e correndo toda espécie de risco que minha geração sequer é capaz de imaginar. Ele fez a sua luta para que eu pudesse fazer a minha. Ele entregou sua vida para que a minha filha - sua neta - pudesse viver num país em que se progride e se avança de forma real no rumo da emancipação de todos os sujeitos subalternos - mesmo com os recuos dolorosos do governo Dilma.
Meu pai era ousado para enfrentar 44 dias de intensas torturas. Para compor paródias musicais nas celas do DOI-CODI - mexendo com o toque de campanhia que avisava que algum companheiro, talvez mesmo ele, iria ser violentamente interrogado em instantes. Enfrentou inclusive o delegado Sérgio Paranhos Fleury em uma dessas sessões.
Meu pai teve ousadia de não se calar mesmo que todas as circunstâncias o exigissem. Diante da ditadura, diante do Papa, diante do brigadeiro, diante do assalto. Ele falou. Porque cria no que falava. Seus muitos erros não são capazes de obliterar esses acertos. Ele era ousado e falava o que era preciso e o que acreditava.
Dia a dia percebo que poucas coisas pude aprender com ele. Mas tenho certeza que essa lição eu vou levar sempre. Não me queiram calado. Se falam e são injustos. Se falam e estão errados. Se me agridem ou me desafiam. Se tentam desonrar a mim, minha família, minha vida profissional. Enquanto eu puder, falarei o que creio, o que sei, o que for preciso. Em honra dele. Em honra dos que lutaram e venceram.

Este post faz parte da quinta blogagem coletiva do #desarquivandoBR

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